O rastro deixado pela lama oriunda do rompimento da barragem da Samarco, cujos donos são a Vale a anglo-australiana BHP Billiton, tem alcance muito maior do que a mancha marrom vista no rio e no mar.
Por onde passou, a onda de rejeitos destruiu vidas – humanas e animais -, prejudicou a flora, desorganizou comunidades e deu a milhares de pessoas a certeza de um futuro incerto. Especialistas, moradores e comerciantes falaram com o G1 sobre os impactos causados na região litorânea do Espírito Santo, destino final dos 62 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério.
Meio Ambiente
A chegada da lama logo evidenciou seus efeitos na biodiversidade marinha. Segundo o Ibama, três toneladas de peixes mortos já foram recolhidos ao longo do leito do Rio Doce no Espírito Santo, até sexta-feira (27). Somente na foz, foram recolhidos 700 animais no domingo (22) e 170 na segunda-feira (23).
De acordo com o oceanógrafo Nery Conti Neto, especialista em dinâmica praial, a pior consequência da chegada da lama ao mar é o possível contato das substâncias nela contidas com as áreas de preservação ambiental, como a Apa Costa das Algas, o Rebio de Comboios e o Arquipélago de Abrolhos.
Mas o secretário estadual de Meio Ambiente, Rodrigo Júdice, acredita que algumas dessas áreas vão conseguir sair praticamente imunes ao estrago causado pela onda de rejeitos. “A possibilidade é muito irrisória dela chegar em Abrolhos ou no litoral de Vitória. O importante é o acompanhamento, o monitoramento do deslocamento para a gente saber o impacto dela nas áreas de preservação próximas ao estuário e à foz do Doce”, disse.
Além disso, a região da Foz do rio é berçário natural para muitos animais marinhos, onde há maior reprodução de animais e grande diversidade de espécies. “Há espécies que se reproduzem só ali, como a tartaruga gigante. É um ecossistema frágil e por isso tem que haver medidas mitigadoras para controlar esses danos ambientais”, disse Nery.
Para ele, os efeitos da chegada da lama não devem ficar restritos apenas aos animais diretamente atingidos por ela. “Vamos supor que tenha um peixinho que se alimenta de uma alga que tem esses metais. Um peixe grande vai comer vários peixes pequenos, que comeu várias algas. Como somos os últimos predadores, acumulamos muito mais metais do que os outros. E esses metais pesados podem causar câncer, mal formação…”, falou.
O analista ambiental Paulo Ceccarelli lembra que há o risco de que espécies entrem em extinção após a passagem da lama. “Todos os animais estão interagindo, uma espécie de peixe que é extinta pode levar com ela dez outros animais”, completou Paulo Ceccarelli, analista ambiental.
E além da contaminar, as substâncias contidas na lama proveniente das barragens também podem entupir os canais respiratórios dos peixes. “A primeira água que chega é a lama em suspensão, com partículas que grudam nas vias respiratórias dos peixes. São partículas muito finas, quase dissolvidas na água”, explicou Nery.
Ainda de acordo com o oceanógrafo, a lama pode continuar alterando a paisagem litorânea por muito mais tempo. “Nas próximas enxurradas, a chuva vai ‘lavar’ o rio, essa lama toda vai voltar. De tempos em tempos, vamos ter essa lama que estava sedimentada chegando na foz de novo”, lembrou.
Mesmo sendo conhecedor da região e do assunto, ele admite que é difícil pensar em soluções num futuro próximo. “Eu não tenho ideia do que fazer. O mar é um ambiente muito dinâmico. Ambientalmente falando, não consigo nem pensar no que deve ser feito”, lamentou.
Economia
Com o mar e o rio cheios de lama, os 68 pescadores cadastrados na Associação de Pescadores de Regência (Asper) estão com seus barcos parados. Para o presidente da associação, uma cena triste de presenciar.
“Hoje nós não temos para onde correr. O rio acabou. A gente já está até se conformando, porque não tem mais jeito, está tudo acabado. Para nós pescadores é a maior tristeza do mundo. A nossa rotina mudou toda, a gente tem o barco pra pescar, mas vai pescar o que? Lama?”, disse Leoni Carlos, de 68 anos.
Para aqueles que exercem alguma outra atividade, além da pesqueira, a insegurança é menor. No entanto, a pesca é o único ganha pão de centenas de pessoas. Segundo a Secretaria de Assistência Social de Linhares, 56 famílias dependem exclusivamente da pesca em Regência.
“É difícil prever o futuro. Meu pai era pescador, meus irmãos são pescadores, eu sou pescadora. E aí com essa água envenenada ninguém pode pescar”, disse a pescadora Izaltina Firmino.
Essas famílias estão recebendo o seguro defeso, benefício do Governo Federal, pago aos pescadores nas épocas de reprodução dos peixes. Na região, o defeso vai de 1º de novembro a 28 de fevereiro. No entanto, segundo a prefeitura, novas formas de ajuda, inclusive com a participação da Samarco, estão sendo discutidas.
Além do prejuízo na pesca, a secretaria já prevê a queda no movimento nos balneários em Linhares. Ninguém, entre órgãos, moradores e comerciantes, acredita que a média de 200 mil pessoas que visitam as praias do litoral Norte vá permanecer.
De acordo com a Associação Brasileira da Indústria de Hotéis (ABIH), o setor de hotéis do Espírito Santo já registrou cancelamento de 20% das reservas para o período de fim de ano. O percentual de queda é o mesmo para a estimativa do setor em reservas de quartos.
Em Regência, onde grande parte da economia é baseada na pesca e no turismo, a situação se torna ainda mais preocupante. As ondas sempre foram o grande atrativo turístico da região, e foram responsáveis por movimentar a vila nos dias de “pico”.Mas com a chegada da lama, surfistas e banhistas não podem nem sequer tocar na água, o que desanima os visitantes.
“É frustrante, é como se a gente estivesse preso dentro de uma jaula. A gente está vendo a onda e não pode chegar lá, está perto e ao mesmo tempo está longe. A gente fica igual peixe fora d’água mesmo”, disse o presidente da Associação de Surf de Linhares (ASL), Rodrigo Venturini.
Entre os proprietários de hotéis e pousadas de Regência, o clima é de preocupação e incerteza. “É desanimador, as pessoas só falam disso. A tristeza e a preocupação são gerais. Foi uma catástrofe, uma tragédia ambiental enorme, e não sabemos quanto tempo essa água vai levar para se normalizar. A vila (Regência) saiu do eixo”, disse a proprietária da pousada Aranã, que fica há cerca de 600 metros da praia de Regência, Dulce Mendonça.
Na pousada dela, já é possível perceber os reflexos da chegada da lama. “Hoje eu não tenho nenhum turista na pousada. Já tive três cancelamentos de reserva de pessoas que desistiram de vir. Meu telefone parou de tocar, não chega nada na minha caixa de e-mail, ninguém reserva mais”, lamentou.
Com a proximidade da alta temporada, período em que Regência recebe mais visitantes, a instabilidade é uma preocupação de quem vive do turismo. “Acabou o turismo, acabou o surf aqui. Minha fonte de renda foi cortada, mataram meu sonho, estão tirando a minha vida”, disse Robson Barros, que também é dono de pousada no local.
Para o economista Eduardo Araújo, Presidente do Conselho Regional de Economia, a expectativa é que com movimentação ocasionada pelos processos de recuperação ambiental, sejam criadas novas oportunidades para a população que ali reside.
“Só consigo enxergar um horizonte com os investimentos feitos durante o processo de recuperação ambiental. Esses investimentos podem trazer uma compensação para as perdas. Por exemplo, se for contatada uma empresa para fazer o assoreamento do rio, essa mão de obra que está ali é uma forma interessante de direcionar recursos e tentar amenizar um pouco esse impacto”, disse.
Sociedade
Além da cor da água, a chegada da onda de rejeitos alterou completamente a rotina de uma população inteira. “Os aspectos abrangem desde as coisas tangíveis, como os danos econômicos, mas também temos a dor emocional, a dor de ver o recurso natural destruído, essas são coisas não tangíveis. Por isso essa é chamada tragédia socioambiental, porque abrange os dois aspectos”, explicou o cientista político Roberto Simões.
A professora Simone Raquel Batista Ferreira, que é Mestre em Geografia Humana e fez pesquisas com comunidades tradicionais na Foz do Rio Doce, explica que a chegada da lama impacta diretamente nos costumes e nas histórias da população local.
“No caso da Foz do Rio Doce, há comunidades de pescadores artesanais, que vivem da pesca e a pesca para eles não é um hobby, é um modo de viver. Eles têm uma história de vida vinculada à pesca. Isso passa de geração em geração. Eles têm saberes, técnicas específicas e vivem disso”, contou.
Ela lembra, ainda, que a preocupação não deve ficar restrita apenas à população adulta.
“As crianças de Regência estão tristes porque não podem mais tomar banho no rio, e isso é um lúdico, é a infância, é a brincadeira, o esporte. São memórias, afetos. As crianças de comunidades tradicionais vão aprendendo o saber dos mais velhos pelo cotidiano, pela prática. Saem com os pais para pescar e vão aprendendo. Se essas crianças chegarem à vida adulta sem aprender o ofício, talvez tenham que sair de lá, tentar a vida de outra forma. Alguém perguntou se eles querem mudar o modo de vida deles? Alguém consultou?”, questionou a geógrafa.
Simões comentou que caso as atividades econômicas fiquem lesadas por muito tempo, a população vai precisar recorrer a outros meios de se manter.
“Eu, sinceramente, só vejo duas opções: ou essas pessoas vão ser sustentadas pela empresa ou vão ter que entrar na Justiça. A sociedade também pode se organizar e fornecer as condições mínimas de vida, mas essa tragédia não é natural, ela é causada por uma empresa, e a sociedade não pode arcar com isso”, disse.
Diante do cenário, a população não vê outra alternativa que não seja se acostumar com uma rotina diferente daquela antes da lama. “Eu e meu irmão gostávamos de pescar, mas agora a gente não pode mais porque essa água está contaminada”, contou uma criança.
“A gente costumava vir aqui ver a água transparente e agora vemos a foz praticamente morta. Gera uma dúvida sobre o futuro, se vai voltar ou não a ser como era antes”, lembrou o gerente comercial Carlos Quirino.
Lama no Rio Doce: saiba o impacto na vida, na economia e na natureza
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